A polêmica em torno da iniciativa da ANATEL de solicitar acesso irrestrito aos registros das chamadas telefônicas fixas e móveis realizadas no Brasil – conforme revelado em matéria da Folha de S. Paulo – deixa clara a necessidade de determinar de forma clara o alcance das previsões normativas a respeito da privacidade e sigilo das comunicações no Brasil, fazendo valer efetivamente estes direitos para o cidadão brasileiro.
A ANATEL adquiriu recentemente equipamentos capazes de receber os dados brutos das chamadas efetuadas pela rede telefônica, dados estes que lhe seriam repassados diretamente pelas operadoras de telefonia e que se referem à totalidade do tráfego telefônico.
Estes dados não compreendem o conteúdo das comunicações em si, porém tudo o que diz respito ao registro da chamada: os números chamados e recebidos, a data, horário e duração das ligações, entre outras informações. No entender da Agência, o acesso a tais dados não representaria violação da privacidade ou do sigilo das comunicações, conforme ressaltado em duas notas de esclarecimento a respeito deste caso [nota 1] [nota2].
A bem da verdade, os dados brutos do tráfego telefônico, ainda que não estejam diretamente ligados aos dados cadastrais do titular de cada linha, podem ser bastante releveladores e úteis – e não somente para a fiscalização do sistema.
Estes registros de chamadas, por si só, podem ser capazes de revelar uma inteira rede de relacionamentos de uma pessoa. Podem indicar o local onde uma pessoa presumivelmente se encontrava em um determinado momento. Podem servir para traçar perfis de costumes e hábitos de uma pessoa. Podem revelar com quem uma pessoa se comunicou em uma determinada circunstância particular. E muito mais – não é difícil de se imaginar que, no fundo, este grande manancial de informações pessoais possa dizer muito mais sobre uma pessoa do que até mesmo o conteúdo de suas próprias comunicações. Não é por outro motivo que, em muitos países, os dados de conexão são considerados como dados pessoais e protegidos como tais.
O acúmulo de informações detalhadas e volumosas sobre nossos atos cotidianos – como acontece neste banco de dados – não é de forma alguma uma atividade isenta de riscos ao usuário do sistema telefônico.
A duplicação de uma base de dados tão volumosa e capaz de proporcionar informações pessoais sobre um imenso número de cidadãos, portanto, não pode ser tratada como uma questão meramente técnica. Esta duplicação eleva o risco de acessos indevidos, vazamento de dados e mesmo da sua utilização imprópria.
Um dos critérios fundamentais a serem levados em conta na manipulação de qualquer banco de dados é o da proporcionalidade. Por este critério, o risco que um banco de dados apresenta deve, além de ser minimizado ao máximo por meios técnicos e jurídicos, ser proporcional à utilidade que se pretende obter a partir do tratamento de dados pessoais. Neste caso específico, o que parece ocorrer é que, para a resolução de um quesito técnico, que é a fiscalização do sistema, aumenta-se sobremaneira o risco ao qual estão expostos os dados pessoais dos usuários do sistema telefônico. O reconhecimento deste risco sugere o recurso a outras alternativas, que evitem o tratamento de dados pessoais ou que lancem mão de técnicas que garantam, efetivamente, o anonimato e a impossibilidade real de identificação dos titulares das linhas telefônicas (o que parece não ser o caso do sistema atual, no qual os números telefônicos de origem e destino das chamadas fazem parte deste conjunto de dados brutos).
Felizmente, perece que iniciativas como esta estão cada vez mais chamando a atenção por oferecerem parcas salvaguardas à privacidade do cidadão brasileiro. Destaque-se que os riscos potenciais de tantas condutas que aumentam potencialmente o risco à privacidade fazem, hoje, parte das preocupações cotidianas de muitos observadores e cidadãos brasileiros. Foi justamente sobre este caso que escreveu, por exemplo, o professor Ronaldo Lemos, do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-Rio, no blogFreedom to Thinker, da Universidade de Princeton:
Arguably, the implementation of these new provisions by Anatel puts Brazil one step closer to initiatives such as China’s practices of scanning SMS messages for “illegal or unhealthy” content, India’s demands for monitoring communications sent via BlackBerry smartphones, or other countries investing in technical infrastructure to surveil citizens. For the country that oncepledged allegiance to the Penguin, in reference to its support to online freedom, free software and free culture policies, the recent developments have been showing an unexpected Orwellian touch.